*Por Erik Nybo
Apesar do chavão bastante difundido no mercado de que “dados são o novo petróleo”, essa afirmação está longe de ser adequada. No entanto, acaba sendo repetida por muitos sem a reflexão do que na verdade essa comparação significa. Trata-se de uma daquelas analogias perpetuadas no mercado que não tem valor algum, não faz sentido e também não facilita a compreensão de nada.
Dados são uma riqueza, assim como o petróleo. Apesar disso, ambos em estado bruto não tem um valor relevante – precisam de um refino. Assim como o petróleo, os dados brutos não tem muito valor e precisam passar por um refinamento (tratamento). Tratados, os dados passam a adquirir valor pois são combustível (podem orientar a tomada de decisão) para o desenvolvimento de negócios. No entanto, algumas diferenças precisam ser pontuadas, pois os dados estão longe de serem comparáveis com o petróleo.
Dados não são commodity
Diferentemente do petróleo, os dados não são commodity. Commodities são bens fungíveis, ou seja, podem ser substituídos por outros de mesma espécie, qualidade e quantidade sem que a percepção de qualquer diferença entre os bens intercambiáveis. Ao contrário, os dados são específicos e relacionados a um ponto referencial ao qual os dados se referem (por exemplo, pessoas, locais, etc). Dessa forma, não são fungíveis – não é possível substituir os dados de uma pessoa por outra, pois não são os mesmos dados e não tem o mesmo valor.
Da mesma forma, não existe um local de comercialização comum de dados como ocorre com as commodities. Pela mesma razão, também não é possível estipular um preço padrão de comercialização de uma determinada quantidade de dados, como ocorre com as commodities. Esse último ponto também torna difícil qualquer venda de produtos derivativos baseados em dados – já imaginou se fosse possível negociar um contrato swap de dados?
Monetização
Como não existe uma bolsa para negociação de dados, a monetização desse também não é tão óbvia como é no caso do petróleo. Não é possível juntar um monte de dados, armazenar em um barril e vender para alguém – até mesmo porque existem limitações legais para a comercialização direta de dados.
Dessa maneira, a monetização de dados não é simples e portanto difere muito do mercado de petróleo. Com a recente introdução da GDPR (General Data Protection Regulation) na Europa e a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados) no Brasil, as empresas de tecnologia estão precisando inclusive se reinventar, pois os seus modelos de negócio foram criados em uma era pré-proteção de dados. Por conta disso, os negócios desenvolvidos por essas empresas de tecnologia muitas vezes não estão alinhados às novas regras sobre proteção de dados.
Recursos escassos
Os dados não são recursos naturais escassos, ao contrário do petróleo que é um recurso natural. Por essa razão, os dados tem um crescimento constante e podem alimentar os negócios de forma inesgotável. Pelo fato de poderem ser produzidos a partir de qualquer momento e a qualquer tempo, sem depender de anos para que sejam produzidos, os dados são inesgotáveis. Muitas pessoas propagam inclusive a informação de que 90% dos dados disponíveis hoje foram produzidos nos últimos 2 anos.
Já que os dados são criados a todo momento, torna-se necessária uma atualização e extração constante deles para que tenham um valor relevante – caso contrário estarão desatualizados e não apresentarão o valor esperado. Assim, um data lake (um repositório contendo uma grande quantidade de dados em seu estado bruto) não é como uma bacia de petróleo – um reservatório escasso de matéria prima. É possível extrair informações do data lake a todo momento, inclusive podendo agregar mais dados para que este se torne cada vez mais útil e possibilite a produção de dados cada vez mais relevantes e, consequentemente, mais valiosos. Uma bacia de petróleo, por sua vez, se extingue por conta da extração massiva.
Justiça intergeracional
Uma vez que os recursos naturais possuem um limite e podem acabar, torna-se necessário desenhar políticas de justiça intergeracional. Afinal, todos os cidadãos de uma nação tem o mesmo direito a perceber os benefícios de um recurso natural explorado pela economia nacional. No entanto, se esse recurso acaba, as próximas gerações podem ser prejudicadas por não terem a oportunidade de viver numa época em que ele existia. Assim, diversas nações tem criados fundos para gestão dos recursos provenientes da exploração dos recursos naturais para beneficiar as futuras gerações, caso o bem se esgote. Esse tipo de preocupação não é necessário quando se fala em exploração de dados – já que estes podem ser produzidos a qualquer momento.
Apesar disso, os efeitos de um mundo que se digitaliza cada vez mais (o que não está relacionado à exploração de dados em si) tem levantado questões como a criação de um salário mínimo universal para acomodar as pessoas que não serão capazes de se manter relevantes em um novo tipo de economia baseado em tecnologia.
O aprendizado do mercado petrolífero
Mesmo com todas essas diferenças existe uma lição que pode ser aprendida com o mercado de petróleo e que é importante tendo em vista que pode vir a afetar o mercado de tecnologia. Trata-se da Maldição dos Recursos Naturais.
A teoria da maldição dos recursos naturais narra o recorrente caso de países ricos em recursos naturais que exploraram essa riqueza de forma intensiva e direcionaram a maior parte de sua economia para este mercado, tornando-a altamente dependente de apenas um segmento. Os investimentos limitados a este segmento costumam resultar no baixo desenvolvimento da economia como um todo de forma a torná-la vulnerável, apesar de possuírem um recurso altamente valioso. O resultado desse tipo de economia ao longo dos anos é que os salários do segmento tendem a ser significativamente mais altos do que aqueles apresentados pelo resto do mercado (veja, por exemplo, o salário das pessoas ligadas ao ramo de petróleo).
Ao longo dos anos, esses salários mais altos em economias altamente dependentes de recursos naturais resultaram em inflação. Com esse pano de fundo, diante de qualquer problema na produção/extração dessas commodities ou extinção dos recursos naturais, as economias altamente dependentes dos recursos naturais acabaram por quebrar.
Essa informação torna-se relevante num momento em que os salários de programadores e cientistas de dados apresentam-se de forma bastante inflacionada. Dito isso, é possível traçar certa similaridade com o que vemos com os cientistas de dados e programadores que hoje possuem pisos salariais acima do mercado e uma progressão de salário superior à de outras carreiras com o que ocorreu em mercados altamente dependentes da economia petrolífera.
O que ocorre agora é que as economias tradicionais estão migrando para o segmento tecnológico, um reflexo do período de transformação digital em que vivemos. Diferentemente do petróleo ou outros recursos naturais que estão disponíveis apenas em algumas regiões, essa migração econômica não depende da localidade de uma empresa ou país, pode ser feita em qualquer lugar.
Por conta disso, as empresas estão demandando cada vez mais pessoas com formação ou conhecimento na área digital. Esse cenário traz a possibilidade de inflação do salário desses profissionais, que também é potencializado devido ao baixo número de pessoas com o conhecimento necessário na área.
Com esse panorama, resta prestar atenção aos desdobramentos desse mercado e tomar os cuidados necessários para evitar que a maldição dos recursos naturais não se torna a “maldição dos recursos digitais”.
*Erik Fontenele Nybo, cofundador da EDEVO e head de inovação no Molina Advogados. Foi gerente jurídico global da Easy Taxi, tendo criado o departamento jurídico e foi responsável pelas questões legais em todos os países de atuação da empresa. Autor e coordenador do livro “Direito das Startups” (Juruá), autor no livro “Regulação e Novas Tecnologias” (Forum) e coordenador do curso “Direito em Startups” no INSPER. Pesquisador do GVCEPE – Fundação Getúlio Vargas. Advogado formado pela Fundação Getúlio. Email: erikfnybo@gmail.com
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