“Não vai ser fácil”. Era fevereiro de 2019. Eu e meu sócio, Daniel Pires, ouvimos essa frase de um mentor da Endeavor, quando comentamos que pretendíamos levantar uma nova rodada no segundo semestre de 2019 para a Cortex. Acho que assim começou nosso Series B. Ele estava certo. Mas por outras razões. Atirou no que viu, acertou no que não viu.
Era uma mentoria de preparação para o Painel de Seleção Internacional (ISP) da Endeavor, que aconteceria em San Francisco dali a algumas semanas. O mentor trouxe a provocação: “Por que não crescer mais rápido? Vai facilitar muito levantar a rodada”.
Naquele momento, a Cortex tinha uma combinação de bom crescimento histórico, unit economics bem altos e gastos em marketing e vendas muito baixos. O que sugeria que deveríamos estar crescendo muito mais rápido do que estávamos. Mas isso consome caixa, e a Cortex não dispunha de tantos recursos assim. Nunca captamos muito investimento e sempre operamos precisando de pouco dinheiro.
Acho que vários empreendedores vivem esse paradoxo: com investimento você pode acelerar, mas, para conseguir investimento, ajudaria muito se você já estivesse acelerado.
A mentoria seguiu em frente. O mentor lembrou que, pelo painel ser no Vale, meca da tecnologia, a barra seria muito alta. Um dos painelistas em especial o preocupava: um investidor de um fundo famoso, altamente especializado em SaaS, e conhecido por ser muito rigoroso nos painéis.
Confesso que saímos um pouco incomodados com as provocações. Mas evitamos a reação natural de rejeitar a mensagem. Passamos algum tempo após a reunião refletindo. A apreensão para o painel era fácil de resolver, bastava nos preparamos bem. E, sobre o Series B, decidimos que, quando voltássemos ao Brasil, aceleraríamos ao máximo nosso crescimento, mesmo que ainda com poucos recursos para investir.
O painel da Endeavor em San Francisco foi uma experiência fantástica. Tivemos ali algumas das melhores e mais profundas discussões estratégicas sobre Cortex com painelistas que havíamos acabado de conhecer. Fomos aprovados. E o tal investidor especialista foi quem mais elogiou e defendeu nossa aprovação.
De volta ao Brasil, conforme combinado, botamos o pé no acelerador. Não havia muito caixa para investir, mas, como nossas métricas eram “best in class”, acreditamos que poderíamos ir acelerando nossa máquina de crescimento, expandindo investimento, enquanto nos preparávamos para levantar nosso Series B. Para isso, nos financiamos com dívida. Bancária e Venture Debt. Assumimos risco, dando inclusive nossos investimentos pessoais como garantia.
Expandimos o time de vendas, definimos metas agressivas, ampliamos nosso marketing e reestruturamos nosso time de pós-vendas. E os indicadores se mantiveram bons. Quando a organização acelera e passa a operar num novo ritmo, isso naturalmente traz pressão no time. Traz fricção e desconforto. Mas o time reagiu bem! E, com as oportunidades criadas pelo crescimento, novas lideranças foram surgindo dentro da empresa. Amadurecendo rapidamente e ocupando espaços. Algo muito gratificante de se ver.
Alguns meses depois, comecei a preparação para a captação. Preparei nosso pitch deck e tive muito apoio do nosso investidor, Rodrigo Baer da Redpoint eVentures, e da Endeavor, que organizou alguns pitches de “treino” com investidores da rede. Que aprendizado. Joguei meu deck fora e reconstruí tudo do zero pelo menos umas três vezes nesse processo.
Montamos então uma lista de investidores-alvo que nos pareciam mais adequados. Endeavor, Redpoint e alguns amigos founders começaram a fazer as introduções. Fez toda a diferença ser apresentado.
Passei algumas semanas nos Estados Unidos fazendo as reuniões. Minha primeira reunião foi em Nova Iorque com um fundo importante. Não foi boa. Não fluiu bem. Como dizia Didi: “Treino é treino, jogo é jogo”. Voltei para o hotel, liguei para o Rodrigo da Redpoint e mudamos pelo menos meia dúzia de slides. De tarde, eu já estava em outra reunião, que correu bem melhor. E assim foi após cada reunião. Sempre iterando. Melhor a cada reunião.
Nas semanas seguintes, de volta ao Brasil, diversos fundos engajaram e foram pedindo mais dados. Foram enviando perguntas. O processo parecia estar correndo bem. Mas o consumo de caixa obviamente havia aumentado com as decisões de expansão que tomamos. E isso não se sustentaria por muito tempo contando apenas com endividamento.
Algum tempo depois, eu e o Daniel participamos de um programa em Stanford, exclusivo para empreendedores Endeavor. Estávamos animados com o engajamento dos fundos. E excitados com todo o aprendizado e troca que estávamos tendo no curso. Mas, ao mesmo tempo, estávamos em contato contínuo com o time no Brasil tentando decidir como resolver a questão do consumo de caixa e fontes de recursos disponíveis. Não podíamos recorrer a mais endividamento. Deveríamos desacelerar, reduzir a queima e estender runway? Isso poderia comprometer o Series B. Mas como então continuar financiando nosso crescimento enquanto a captação avançava?
Até que, em uma das aulas, um professor falou sobre a aplicação de dívidas conversíveis em rodadas semente:
“Quando a empresa é ainda muito embrionária, e este primeiro investidor não deseja empreender tanto tempo discutindo termos e valuation, ele então investe como dívida que se converterá em ações na rodada seguinte, digamos um Series A, com um certo desconto”.
Opa! Perguntei a ele se dívidas conversíveis também costumavam ser feitas com frequência pelo investidor Series A de uma empresa, enquanto ela levanta seu Series B. O cerne da minha dúvida era a sinalização que isso passava para os investidores Series B, que estão avaliando a empresa.
“Sim, também é usado como ponte entre rodadas. E a sinalização é a melhor possível. Afinal, demonstra alto grau de confiança no negócio e de que a rodada será bem sucedida pelo investidor que já está dentro e acompanha de perto a empresa”. Assim respondeu o professor. Lembro do Daniel, do outro lado da sala, olhando pra mim nesse momento com uma expressão que parecia dizer algo como: “Ahhhh moleque!”
E assim fizemos. Levamos uma proposta de dívida conversível para a Redpoint, que mais uma vez confiou no nosso trabalho e nos apoiou para continuarmos crescendo.
Os investidores mais interessados foram aprofundando suas análises sobre Cortex. Perguntando. Sugerindo. Essa era a segunda vez que eu fazia um processo organizado de funding. É um processo cansativo, mas que te proporciona uma troca muito rica. Faz você evoluir a forma como pensa no seu negócio. Melhoramos bastante posicionamento e estratégia como fruto desse último processo.
Tínhamos diversos interessados. O desafio era materializar esse interesse em term-sheets. Investidores reagem bem a competição. Então, no exato momento que tive a confirmação de que a primeira proposta chegaria, levei essa informação aos demais interessados. Tentei fazer os tempos casarem. Deu certo, e os primeiros term-sheets foram chegando.
Dois fundos, porém, que estavam entre aqueles que eu mais admirava, haviam dito algumas semanas antes que colocariam proposta mas ainda não haviam se manifestado.
Eis que um destes investidores me liga e diz algo como: “Passei a última semana conversando com o fundo X”, que era exatamente o outro investidor do qual eu também aguardava proposta. Ele continuou: “Decidimos que queremos co-liderar essa rodada na Cortex. Ambos os fundos estão há um bom tempo procurando um player na sua área. Já vimos a empresa A, B e C, e achamos que a Cortex é a mais bem posicionada para se consolidar como a líder do setor. Com nosso apoio, suas chances disso acontecer só vão aumentar”.
Eu, com certeza, não esperava por isso. Fora a complexidade adicional de ter dois fundos liderando, significava também captar um montante de recursos bastante superior àquele que eu estava buscando. E isso significava maior diluição aos founders.
Eu e Daniel refletimos. Concluímos que a diluição adicional não incomodava tanto. Muito mais relevante que isso era o fato de ter dois dos melhores fundos querendo entrar juntos, confiando em nós e comprando nossa visão. Respondemos então com um sonoro: “Vambora”!
Acertados os termos, assinamos o term-sheet e, em meados de dezembro, começamos a due diligence.
A due diligence acabou sendo um processo bem longo e complexo. Fizemos second opinions com investidas de um dos fundos. O outro fez uma extensa due diligence com time próprio. Fomos auditados por uma empresa de tecnologia e produto do Vale. Tivemos auditoria financeira de uma consultoria do Vale. Toda parte fiscal, trabalhista e legal foi avaliada por uma grande auditoria e um grande escritório de advocacia brasileiros. Deu muito trabalho, mas foi bem sucedido e tivemos a confirmação dos investidores de que não haviam red flags.
Os advogados brasileiros e americanos evoluíam na documentação e estávamos a apenas alguns dias de assinar os contratos definitivos.
E, então…. o mundo foi atingido por um meteoro chamado COVID-19.
Os mercados derreteram. Praticamente todo e qualquer investimento no planeta foi congelado. E os fundos disseram que não possuíam condições de concluir a transação. Reiteraram que desejavam fazer o aporte, admiravam a empresa, os founders, a estratégia, mas, simplesmente, não podiam ir em frente. Não naquele momento.
…
Estávamos há praticamente um ano acelerando e aumentando nosso consumo de caixa com poucos recursos. Era a reta final de um processo longo de investimento, que tudo indicava já estar garantido. Em suma, o mundo entrava naquilo que provavelmente seria a pior crise desde 1929, e pegava a Cortex completamente no contrapé. Uma situação altamente delicada.
Começavam ali as piores semanas de nossas vidas enquanto empreendedores. A Cortex já passou por momentos de grande provação. Já tivemos que tomar medidas muito duras no passado. Mas, pela primeira vez, o risco ao negócio era concreto. Confesso que por um momento temi pelo pior. Em uma hora como essa, é impossível não pensar muito na sua família. No seu filho. Em como seus colaboradores e suas famílias dependem de você. Em como você arriscou tanto. Foi, sem dúvida, a hora mais escura na minha trajetória empreendedora.
E era um verdadeiro paradoxo. A empresa nunca havia crescido tanto. As métricas eram indiscutivelmente topo de linha. Mas não serviam de muito nesse momento. Simplesmente não havia capital no mercado.
No dia seguinte, com a cabeça mais fria, fui pra casa do Daniel. A quarentena que me perdoe, mas precisávamos estar juntos naquele momento. E passamos o dia digerindo, pensando e definindo o que fazer. Lembro que abri nossa conversa dizendo: “A coisa mais importante para sairmos dessa é estarmos juntos e 100% alinhados. Se tiver uma aresta que seja, não vamos conseguir”.
E continuei: “A segunda coisa mais importante para tomarmos as decisões certas aqui é desapegar do que o futuro ia ser. Esse futuro acabou. Não vai mais acontecer. Esquece o investimento. Esquece o plano estratégico que havíamos passado finais de semana construindo com nossa liderança. Joga tudo fora. E vamos definir aqui como vamos continuar vivos para poder contar essa história“.
Num determinado momento, lembro que a única risada que demos foi quando um de nós disse que era bom que tudo aquilo estivesse acontecendo, pois serviria para deixar essa história melhor e mais inspiradora quando fossemos contá-la.
A frase que resumia o plano de guerra era: Garantir a sustentação financeira da empresa durante a crise, buscando, dentro do possível, manter pessoas, clientes e “fundability”. Nesse plano, fomos muito mais detalhistas do que gostamos de ser. Mais prescritivos. Mais micro gestores do que jamais fomos. Aliás, vale dizer que, enquanto escrevo esse texto, esse ainda é o plano vigente na empresa.
Nos dividimos. Eu foquei na parte estratégica e de finanças do plano. O Daniel se voltou para a parte de pessoas e clientes.
Gerenciamos o caixa com rigor extremo. Recebemos em dia de quase todos clientes. Não sem um esforço hercúleo. De forma negociada, conseguimos suspender por meses grandes valores de fornecedores. Reduzimos custos. Viabilizamos linhas adicionais de Venture Debt, mesmo não havendo praticamente capital no mercado. E, não houve como evitar, foi preciso desligar Cortexianos fantásticos que com certeza não gostaríamos de ter perdido.
Em paralelo a tudo isso, no que tange à parte de pessoas e clientes, adaptamos a empresa por completo ao período de guerra. Aproximamos as áreas, reestruturamos a forma de trabalho, montamos squads de crise, focamos a empresa toda em nossa base de clientes e ficamos mais perto do que nunca do nosso time. Aumentamos a frequência de comunicação com toda a empresa. Fomos transparentes. Mais do que nunca. E lançamos novas ofertas adequadas à crise em apenas poucas semanas para manter nossos clientes engajados.
Nunca vi a empresa assim. Tão engajada. Estavam todos com a faca nos dentes. Sempre falamos sobre termos o privilégio de poder contar com um time tão diferenciado. Tão qualificado. Tão bom de trabalhar junto. Agora eram muito mais do que isso. Haviam se tornado verdadeiros guerreiros.
E eu e o Daniel parecíamos estar em sincronia perfeita.
Não sei direito como. Confesso que as últimas semanas haviam sido de adrenalina pura. Incontáveis noites de insônia. Mas o fato é que tínhamos conseguido o que inicialmente cheguei a achar que seria um “milagre”. Havíamos conseguido garantir a sustentação financeira da empresa. Mesmo no cenário mais pessimista de fluxo de caixa, não parecia haver mais risco palpável ao negócio. Somente naquele momento começamos a respirar mais aliviados. Somente naquele momento voltamos a fazer piadas e a gargalhar, algo tão comum na cultura da Cortex.
Eis que algumas semanas após termos estabilizado a situação, o sócio de um dos fundos me liga e diz algo mais ou menos assim: “Leo, tenho passado esse tempo todo tentando ver uma forma de fazer o aporte. Os investimentos ainda estão praticamente parados, mas com a retomada do mercado das últimas semanas, acho que agora tenho uma chance real de aprovar a conclusão do nosso investimento, e quero te dizer que vou fazer o máximo para isso acontecer”.
E continuou: “Nada mudou do nosso entusiasmo com a empresa. E nunca demos para trás em nenhum aporte nesse estágio aqui na região. Vou fazer de tudo para cumprir minha parte, e vamos deixar o restante do investimento aberto, por uma janela de tempo, para você escolher outros investidores que quiserem aderir à rodada”.
….
Wow!
Esse fundo é o Softbank. E o sócio se chama Paulo Passoni.
Se eu já admirava antes o fundo por ter investido em várias das melhores empresas de tecnologia da América Latina, pela sua estrutura e pelas reuniões repletas de insights que tivemos no seu escritório de Miami ao longo do processo, agora eu tinha a confirmação que havia escolhido o sócio certo para essa nova fase da Cortex.
Eu, Paulo e o Matthew Pieterse, também do Softbank, trabalhamos então intensamente nos dias seguintes para viabilizar o aporte. E deu certo. Somos sócios agora. Acabamos de concluir uma rodada de R$ 120 milhões, uma das maiores em empresas SaaS da América Latina. E estamos muito animados com o que vem pela frente.
Sempre dissemos que uma rodada de investimento não é objetivo em si, mas somente mais uma validação de que você está no caminho certo. Estamos cientes que esse é apenas um capítulo da história que segue em frente.
Enfim, talvez você esteja se perguntando por que decidimos escrever esse texto. Por que abrir tanto. Por que se mostrar tão vulnerável.
O fizemos com o mais puro espírito de “give back”, que está tão entranhado na rede Endeavor. Recebemos uma quantidade de ajuda quase que infinita em nosso momento mais difícil. Da Endeavor, de amigos founders, de fornecedores, de sócios. Achamos que deveríamos retribuir de alguma forma.
Obviamente, você não deve tomar nossa história como o certo a se fazer. Cada empreendedor deve analisar e definir a razão entre ambição e risco que é mais adequada ao seu perfil. Até onde pode esticar a corda. O quanto está disposto a arriscar. Provavelmente acertamos em alguns pontos e decisões. Com certeza erramos em tantos outros. De um modo ou de outro, espero que essa história o ajude em sua trajetória empreendedora.
Com essa ressalva, e ainda com o mesmo espírito de give back, tomo a liberdade de concluir com o que considero ser a maior reflexão que eu e Daniel tivemos nessa jornada:
Faça a coisa certa. Construa boas relações. Seja correto. Sempre. Com seus fornecedores. Clientes. Parceiros. Sócios. Seu time. Empreender é extremamente difícil. Seria impossível fazê-lo não fosse em equipe. Em parceria. Não fosse todo o apoio que tivemos em nossa hora mais escura, essa história provavelmente não estaria sendo contada.
Ah! E, claro, NUNCA desista. Por mais adverso que pareça o cenário, mantenha a calma e lembre-se que sempre há uma saída. Let’s win!
Glossário
- Series B: segunda rodada de financiamento para uma empresa.
- Unit economics: as receitas e custos diretos associados com o modelo de negócios expressos por unidade.
- Best in class: o produto superior dentro de uma categoria de hardware ou software.
- Venture Debt: crédito adaptado para empresas como startups e PMEs inovadoras.
- Pitch deck: apresentação do pitch.
- Runaway: fôlego de caixa.
- Term-sheets: documento de acordo pré-investimento, que empreendedor e investidor assinam, como uma “carta de intenções”.
- Due diligence: processo de investigação de uma oportunidade de negócio que o investidor deverá aceitar para poder avaliar os riscos da transação.
- Fundability: capacidade de financiamento.
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