*Por: Gustavo Pinto

Quem observa a China apenas como a “fábrica do mundo” ainda está olhando para um país que já não existe. Nas últimas décadas, o gigante asiático se tornou um laboratório em escala continental, capaz de conceber chips proprietários, treinar modelos fundacionais de inteligência artificial, criar ecossistemas digitais verticais e colocar aplicações em funcionamento para centenas de milhões de pessoas em questão de semanas. É mais do que tecnologia: é cultura, estratégia e execução.

Pude observar tudo isso de perto, estive em uma imersão presencial em empresas como Huawei, Alibaba Cloud, Meituan, Kwai, SenseTime e Nio, e em centros de inovação em Beijing, Hangzhou e Shanghai. Também participei do 8º World Artificial Intelligence Conference (WAIC), que reuniu líderes globais em torno do tema “Solidariedade global na era da IA”. A vivência em campo me permitiu observar como tecnologia, cultura e estratégia se entrelaçam para criar impacto em escala nacional.

A engrenagem chinesa começa muito antes do primeiro protótipo. Cultura e educação estão no centro. Em um país que nunca foi colonizado e carrega mais de 5 mil anos de história, as relações de confiança se constroem lentamente, mas a execução, quando decidida, é veloz. O trabalho segue um ritmo intenso (o famoso modelo 9/9/6) e a educação é tratada como vetor estratégico de inovação, com pressão e investimento para formar talentos em altíssima escala.

Essa base cultural se encontra com um ecossistema empresarial e governamental que opera de forma coordenada. A Huawei, por exemplo, destina 20% de sua receita para P&D e desenvolve modelos próprios de IA; a Alibaba Cloud verticalizou toda a sua stack tecnológica e criou a família de modelos Qwen; a Meituan atende a 150 milhões de pedidos diários combinando múltiplos serviços em um super app; e a Kwai já conecta mais de 60 milhões de usuários no Brasil ao social commerce, fenômeno que na China responde por mais de 25% do e-commerce. Modelos como o X27 (shopping convertido em mega estúdio de live commerce) e veículos como os da Nio, com baterias removíveis roboticamente em 3 minutos (sistema BaaS, battery as a service) e assistentes virtuais integrados, ilustram como a inovação permeia setores inteiros.

O que impressiona não é apenas o que a China cria, mas a velocidade e a escala com que aplica. Modelos de IA treinados para setores específicos entram em operação rapidamente, e agentes autônomos já estão presentes no varejo, na saúde, na mobilidade e na gestão pública. Tudo isso sustentado por uma infraestrutura de dados e uma penetração digital que supera 99% da população.

O Brasil, por outro lado, avança de forma mais fragmentada. Temos talento técnico, criatividade e um mercado interno expressivo, mas enfrentamos barreiras estruturais: marcos regulatórios mais lentos, investimentos em P&D ainda tímidos e pouca integração entre governo, empresas e a universidade. Nossa digitalização avança, mas sem a mesma

verticalização tecnológica e sem uma estratégia nacional robusta que articule setores e defina prioridades de longo prazo.

Claro que o modelo chinês não é simplesmente replicável. Ele está profundamente enraizado na sua história, no seu sistema político e na sua cultura. Mas há lições evidentes: investir pesado e de maneira contínua em pesquisa; pensar a tecnologia como ativo de soberania; criar mecanismos para que empresas inovem não apenas em produtos, mas em infraestrutura e padrões; e, sobretudo, articular esforços de forma coordenada, entendendo que competitividade digital se constrói com visão de décadas, não de mandatos.

O mundo caminha para uma era em que inteligência artificial, integração de dados e inovação aplicada definirão não só mercados, mas também o lugar de cada nação no mapa geopolítico. A China já entendeu isso e está executando. O Brasil tem base para aprender rápido e aplicar com ambição. Como implementamos, com coordenação e velocidade, o que já está comprovado para ganhar competitividade global?

*Gustavo Pinto é pesquisador sênior no Zup Labs, frente dedicada à pesquisa e desenvolvimento (P&D) em Inteligência Artificial Generativa, onde conduz pesquisas aplicadas voltadas à Zup, empresa de tecnologia que integra o grupo Itaú Unibanco, e seus clientes. Doutor em Ciência da Computação pela UFPE, Gustavo é autor de mais de 100 artigos científicos na área de engenharia de software.


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